Cleilton Silva
Entre as peças montadas desde o início dos anos 2000, destaco Senhora dos Afogados (III Ato) não pelo afã criado em sua volta nem tampouco pelo trio de prêmios recebido durante a sexta edição do Fórum Intermunicipal de Teatro Amador da Bahia, mas pela estrutura maturada criada durante os meses em que estivemos longe do público, ora trancafiados em salas para a leitura de textos outros (que finalmente desaguaram no de Nelson), ora nas íngremes estradas pra se chegar a ambientes menos corriqueiros, mais exóticos.
Senhora não era tão pretensiosa. Até hoje não o é. Fugiu daquilo que nos propúnhamos quando nos sentamos pra criar pequenas mostras em celebração ao mês do teatro. Não sinalizamos sua extensão, mesmo porque a proposta era encenar o ato último e terceiro de uma peça que eu já tinha posto os olhos há algum tempo e, numa releitura, pensava adequá-la pro nosso elenco. E assim se fez. Partimos depois da leitura de cada ator, para a sua livre estruturação. Já dali estava erguida uma nova linguagem. Ocupamo-nos de uma montagem sem mesmo saber o que queríamos. Sabíamos, digo. No entanto, sem fazer maiores medidas. A proposta era não ter proposta. Começar sem muitos roteiros. Centenas de textos eram lidas sempre às 18h, quando sentávamos à mesa, com algumas bem-aventuradas libações pra não ficar tão exaustivo e não perder o ritmo ritualístico da preparação. Nem todos comungavam inicialmente do processo. Calavam, somente. E por isso andávamos sem mais atropelos. Senhora dos Afogados (III Ato) poderia ser hoje uma daquelas convencionadas montagens pouco ocupadas das nuances do texto e que seguem rigorosamente as indicações do seu autor. Felizmente tomou outros rumos.
A pesquisa, aviso antes, era apenas um veículo para montarmos um texto coletivo (ainda não terminado e sem data para entrega). Enquanto ele não saísse, faríamos Senhora. E ela começou a nos escapar. Era prevista apenas uma apresentação, juntando-se às demais feitas com outros autores pela comunidade. Não conseguimos captar recursos junto à SecultBA nem tivemos o ínfimo orçamento aceito pela Prefeitura Municipal. A falta de um recurso maior fez com que recuássemos a participação com a comunidade. Ficamos mais uma vez entre os convalescentes patrocínios do comércio local.
O primeiro passo era pensar a peça fora do palco. Seria então qualquer lugar menos pomposo, sem o conforto usual das poltronas. Uma arena, uma casa velha. Isso veio depois. Antes, como disse, estivemos nos textos. Depois o elenco foi pra’quilo que chamamos off-cinas. Tudo exteriormente desligado, e nós ficávamos dentro, trabalhávamos dionisiacamente, como sempre. Um calibre para a criatividade. Um agito ativo, mas sagazmente escondido.
Poderia, por isso, escolher, hoje, outras montagens, cuja preparação teve um tom mais sério. Senhora foi o não-teatro. Uma cara amorfa. E nem por isso deixou de ser um trabalho cansativo, intempestivo. Durante a gesta e o parto, saíram do grupo três das nossas quatro atrizes: Graziela, Daiane e Gildinha, respectivamente. A primeira não chegou ao espaço da temporada; a segunda saiu antes da nossa ida ao Prêmio Anual de Teatro Amador, em S. Amaro; a última foi-se sem a vontade da saída espontânea, extraviou-se, porém a trabalho e sendo estudante da vida que quer dar, para terra de um tal João da Bossa Nova.
Por fim, nossa base era a experimentação. Fundamental sua apresentação. Porém, se ficássemos nas trilhas das pequenas mostras e off-cinas teria sido também vantajoso, logo frutífero. Entretanto, perder-se-ia o plano texto-ator-plateia (ciclicamente), sua magnânima essência. Antes de todas saídas e extravios, pensei nunca estarmos tão próximos de uma nova linhagem estética bem alinhavada quanto naquele momento. Cada um pensava por si (um sintoma pra não reduzir a jactância criativa a um mero manifesto movimentista ignóbil). E o recorte dessa nova fatura não teria uma identidade facilmente identificada com um dono e uma legenda, apesar de sabermos do lugar do ator e do diretor (será?). A hierarquia existe, e ela se torna mais forte quando é colocada numa fragilidade planejada. Eu-mando-vocês-obedecem não caberia nas relações profissionais do nosso grupo. Não há interstícios de uma instituição religiosa. Somos livres do começo ao começo.
Então nós, os homens, ficamos mais cabeludos que de costume pra compor as personagens, previamente descobertas no processo das mostras individuais onde cada ator fazia uma leitura a seu modo, com a personagem de sua predileção. Daí saímos, aqui ficamos. Por mais carnavalesco-festivo que seja montar uma peça e ter seus bastidores em harmonia e conflito, não se perde de vista o sentido político de fazê-lo.
Explico: há pouquíssimas ações governamentais para se estabelecer um apoio, para repassar uma aquisição das verbas destinadas ao teatro. Aqui ele é alegórico. Quando muito, recebe-se um parabéns dos pedantes senhores governamentáveis. E ainda temos que anunciar as faltas quando elas são insistentemente divulgadas em falsas propagandas como apoio, resgate cultural de. Não, aqui o certo é agir cinicamente com a mediocridade das instâncias partidárias. Nosso mundo é um sem partido.
Somos engajados e estranhos politicamente pela via brechtiana e imersos (quiçá incorporados!) por Stanislavski. Sem necessitar do cumprimento das explicações. O teatro é assim: móbile e vulcânico, seu movimento não é alçado pela lei nem pela ordhem, recua-se o corpo e vai-se embora, cinicamente.